segunda-feira, 11 de agosto de 2008

IRINEU DE LION

Patrística>S.Ireneu de Lião-séc.II


CONTRA AS HERESIAS - LIVRO I - PARTE I (A)

Por Santo Ireneu de Lião (Bispo)
Tradução: Lourenço Costa
Fonte: Coleção Patrística, Volume 4, Ed. Paulus.
PRIMEIRA PARTE
SISTEMA FUNDAMENTAL
A. O PLEROMA E OS EÕES QUE O COMPÕEM
1,1. Eles dizem que existia, nas alturas, invisíveis e inenarráveis,um Eão perfeito, anterior a tudo, que chamam Protoprincípio,Protopai e Abismo. Incompreensível e invisível, eterno e ingênito que se manteve em profundo repouso e tranqüilidade durante uma infinidade de séculos. Junto a ele estava Enóia, que chamam também Graça e Silêncio. Ora, um dia, este Abismo teve o pensamento de emitir, dele mesmo, um Princípio de todas as coisas; essa emissão, de que teve o pensamento, depositou-a como semente no seio de sua companheira, o Silêncio. Ao receber esta semente, ela engravidou e gerou o Nous, semelhante e igual ao que o tinha emitido e é o único capaz de entender a grandeza do Pai. Este Nous é também chamado Unigênito, Pai e Princípio de todas as coisas. Juntamente com ele foi gerada a Verdade e esta seria a primitiva e fundamental Tétrada pitagórica que chamam também Raiz de todas as coisas. Ela seria composta pelo Abismo e o Silêncio, o Nous e a Verdade. O Unigênito, tendo aprendido o modo como foi gerado, procriou, por sua vez, o Logos e Zoé, Pai de todos os que viriam após ele, Princípio e
formação de todo o Pleroma. Por sua vez, foram gerados pelo Logos e
Zoé, segundo a sizígia, o Homem e a Igreja. Esta seria a Ogdôada
fundamental, Raíz e substância de todas as coisas, que por eles é
chamada com quatro nomes: Abismo, Nous, Logos e Homem. Cada um deles
masculino e feminino, da seguinte forma: inicialmente o Protopai
se uniu, segundo a sizígia, à sua Enóia, que eles chamam também
Graça e Silêncio; depois o Unigênito, também chamado Nous, uniu-se à
Verdade; depois o Logos, à Zoé; por fim, o Homem, à Igreja.
1,2. Estes Eões, produzidos para a glória do Pai, querendo, por sua vez, glorificar o Pai com algo de si mesmos, fizeram emissões em sizígia. O Logos e Zoé geraram, depois do Homem e da Igreja, outros dez Eões, cujos nomes dizem ser estes: Abissal e Confusão, Aguératos União, Autoproduto e Satisfação, Imóvel e Mistura, Unigênito e Felicidade: estes são os dez Eões que dizem derivar do Logos e Zoé.
Por sua vez, também o Homem com a Igreja produziu doze Eões aos quais atribuem estes nomes: Consolador e Fé, Paterno e Esperança, Materno e Caridade, Eterno e Compreensão, Eclesiástico e Bem aventurança, Desejado e Sofia.
1,3. Esta é a teoria errada deles a respeito dos 30 Eões
impronunciáveis e não conhecíveis. Segundo eles, este é o Pleroma invisível e espiritual, com a sua tríplice divisão em Ogdôada, Década e Duodécada; e por isso dizem que o Salvador-pois recusam dar-lhe o nome de Senhor-não fez nada publicamente durante 30 anos,para significar o mistério destes Eões. E também dizem que na parábola dos operários enviados a trabalhar na vinha se indicam com toda clareza estes 30 Eões(1). De fato, alguns são enviados na primeira hora, outros na terceira, outros na sexta, outros na nona e
outros na undécima hora. Soma- das, essas horas diversas dão o total
30: 1+3+6+9+11=30. Pelo número de horas são indicados os Eões, que
são os grandes, os admiráveis, os mistérios escondidos que eles
próprios frutificam, mostrando assim como também puderam adaptar e
acomodar à sua imaginação outras - coisas ditas nas Escrituras.
2,1. Dizem também que o seu Protopai é conhecido somente pelo que
nasceu dele, o Unigênito, isto é, o Nous, que é invisível e
incompreensível para todos os outros Eões. Segundo eles, o Nous
era o único a deleitar-se em ver o Pai e a exultar ao contemplar a
sua grandeza sem medida. Ele pensava também em participar aos outros
Eões a grandeza do Pai, quer enquanto grande e extenso, quer também
enquanto era sem princípio, incompreensível e invisível. Mas, pela
vontade do Pai, o Silêncio o deteve nesta vontade de levar todos os
Eões à compreensão e ao desejo de indagar sobre o seu Protopai. E,
da mesma forma, todos os outros Eões desejavam secretamente ver o
gerador de sua semente e contemplar aquela que é a sua Raiz sem
princípio.
"Paixão" de Sofia
2,2. Mas o último e mais novo Eão da Duodécada, gerado pelo Homem e a Igreja, isto é, Sofia, excitou-se grandemente e sofreu a paixão esmo sem o abraço do cônjuge, o Desejado; essa paixão, nascida ao redor do Nous e da Verdade, propagou-se neste Eão, isto é, Sofia, que foi alterada, com aparência de amor, mas, na realidade, de temerariedade, porque não se comunicara ao Pai perfeito da mesma forma que ao Nous. A paixão consistia na procura do Pai: queria dizem -compreender a sua grandeza e como não lhe fosse possível pelo fato de prender-se ao impossível, entrou em grande angústia por causa da grandeza do Abismo, da imperscrutabilidade do Pai e do amor por ele. Lançando-se sempre para a frente, seria finalmente absorvida pela doçura do Pai e dissolvida na substância universal se não tivesse encontrado o Poder que consolida e guarda os Eões fora da grandeza inefável. A esta grandeza dão o nome de Limite: segurado por ela e consolidado, quando, com dificuldade, voltou a si e já convencido de que o Pai é incompreensível, abandonou a primitiva Entímese juntamente com a paixão por que fora tomado por causa do assombro e da admiração.
2,3. Alguns deles transformam esta paixão e retorno de Sofia em mito: querendo fazer uma coisa impossível e incompreensível gerou uma substância amorfa, da forma que era possível a uma mulher.
Examinando-a, primeiramente entristeceu-se por causa do fruto incompleto do parto, em seguida teve medo de que ele perecesse, e por fim, como que fora de si e apavorada, isto é, confusa, procurava a causa disso e como poderia esconder o que tinha nascido dela.
Submersa por estas angústias, tomou o caminho de volta e procurou recorrer ao Pai. Depois de curto espaço perdeu as forças e elevou suas súplicas ao Pai e com ela rezaram também os outros Eões,
especialmente o Nous. Dizem que é este o início primevo da
substância material: a ignorância, a tristeza, o medo e o assombro.
2,4. Além desses Eões, o Pai gera por meio do Unigênito, sem esposa
e sexo, à sua imagem, o acima citado Limite. Às vezes, porém, dizem
que o Pai tem o Silêncio como cônjuge, outras, que não há nele
distinção de sexo. O Limite é chamado também Cruz, Redentor,
Emancipador, Delimitador e Guia. E é justamente por meio do Limite-
dizem eles -que Sofia foi purificada e reintegrada na sizígia.
Porque, quando foi separada de Entímese com a paixão que a tinha atingido, continuou a ficar dentro do Pleroma; mas a sua Entímese com paixão própria, separada, crucificada, expulsa dele pelo Limite, dizem que seria uma substância pneumática, com impulso natural de Eão, porém sem forma nem substância, por que não as recebeu. Eis por que este parto seria um fruto fraco e feminino.
Cristo e o Espírito Santo
2,5. Depois que esta Entímese foi afastada do Pleroma dos Eões e que sua Mãe foi reintegrada na sizígia, o Unigênito, pela vontade do Pai, emitiu outro par, a fim de que nenhum outro Eão sofresse a mesma paixão: estes são o Cristo e o Espírito Santo que completariam os Eões (2).Com efeito, o Cristo ensinou-lhes a natureza da sizígia e os tornou capazes e idôneos a conhecer e entender o Ingênito e proclamou no meio deles o conhecimento do Pai, que é incompreensível e inatingível, que ninguém pode ver nem entender a não ser por meio do Unigênito.
E a causa da permanência eterna dos Eões é o que há de
incompreensível no Pai, e a causa de seu nascimento e formação é o
que há de compreensível nele, porque ele é Filho. São estas as
coisas que o Cristo, agora gerado, operou neles.
2,6. O Espírito ensinou a todos do mesmo modo a dar graças e introduziu-os no verdadeiro repouso. Por isso - dizem eles -os Eões foram constituídos todos iguais, da mesma igualdade e forma de pensamento e todos se tornaram Nous, Logos, Homem e Cristo, e
semelhantemente, os Eões femininos se tornaram todos Verdade,
Vida, Espírito e Igreja. Estabilizados e gozando de repou- so
perfeito, os Eões -afirmam eles -cantaram com grande alegria um hino
ao Protopai, comunicador da grande alegria. Por este benefício, numa
única vontade e pensamento de todo o Pleroma dos Eões, com o
consenti- mento do Cristo e do Espírito, cada um deles trouxe e pôs
em comum o que tinha de mais excelente e belo; e por uma harmoniosa
composição e cuidadosa união fizeram, em honra e glória do Abismo,
uma emissão de beleza perfeita e astro do Pleroma, fruto perfeito,
Jesus, que também se chama Salvador e Cristo e Logos, nomes que
derivam do Pai, e o Tudo, porque produzido por todos. E com ele e em
sua honra e dos Eões, foram emitidos, para a sua guarda, os Anjos,
da sua mesma natureza.
Argumentos escriturísticos
3,1. Esta é a condição dentro do Pleroma: a sua produção e o infortúnio do Eão sujeito à paixão e quase perdido e a queda na
matéria múltipla por causa do desejo do Pai e a consolidação na luta
por obra de Limite, Cruz, Redentor, Emancipador e Guia; o
nascimento, posterior ao dos Eões, do Primeiro Cristo e do Espírito
Santo, emitido pelo Pai em seguida ao seu arrependimento; e a
formação do segundo Cristo, que chamam também de Salvador, pela
cotização comum. Porém estas coisas não foram ditas explicitamente
porque nem todos entendem a sua gnose, mas foi indicado, em
mistérios, pelo Salvador, por meio das parábolas, àqueles que podem
entender. Assim os 30 Eões foram indicados, como já dissemos, pelos
30 anos em que o Salvador não fez nada em público e também pela
parábola dos operários da vinha. Dizem também que Paulo nomeia
muitas vezes e abertamente os Eões e conserva a sua ordem quando
diz: "por todas as gerações dos séculos dos séculos" (3). Também
nós, quando dizemos, no seguimento da Eucaristia, nos séculos dos
séculos, fazemos alusão aos Eões. E todas as vezes que se encontram
as palavras século ou séculos dizem que se referem aos Eões.
3,2. A emissão da Duodécada dos Eões é indicada pelo fato de que o Senhor disputou com os doutores da lei aos doze anos e pela eleição dos apóstolos: de fato elegeu doze apóstolos (4). Os outros dezoito Eões seriam indicados nisto, como eles dizem: depois da ressurreição dos mortos o Senhor passou 18 meses com os apóstolos. E também as primeiras duas letras de seu nome,jota (= 10) e eta (= 8) significam claramente os 18 Eões. E também que os 10 Eões seriam indicados do mesmo modo pelo jota com que o seu nome inicia. É por isso que o Salvador teria dito que não será omitido nem um só i, uma só vírgula da lei, sem que tudo seja realizado" (5).
3,3. A paixão do décimo segundo Eão é significada, dizem eles, pela apostasia de Judas, que era o décimo segundo apóstolo, e pelo fato de que o Senhor padeceu a sua paixão depois do décimo segundo mês, pois, para eles, teria pregado somente durante um ano, depois do batismo. E que isso seria também claramente significado pela mulher que sofria perda de sangue. Doente durante 12 anos, foi curada pela vinda do Senhor, quando tocou a orla da veste, e que foi por isso que o Salvador disse: Quem me tocou? para indicar aos discípulos que tinha acontecido um mistério entre os Eões, a cura de
Eão enfermo. Por meio daquela que sofreu doze anos significava-se aquele Poder, porque, como dizem, a sua natureza difunde-se e expande-se ao infinito. E se não tivesse tocado a veste do Filho, isto é, da Verdade da primeira Tétrada, significada pela orla da veste, se dissolveria em toda a substância. Mas parou e repousou da paixão pelo Poder saído do Filho. Dizem que esse Poder é o Limite que a curou e afastou dela a paixão.
3,4. Que o Salvador seja o tudo saído de todos os Eões eles o vêem indicado pelas palavra: todo masculino que abre o útero. Sendo o Tudo, abriu o seio da Entímese, Eão tomado pela paixão quando foi afastado do Pleroma. E também chamam a esta de segunda Ogdôada, da qual falaremos mais adiante. O próprio Paulo, dizem, teria falado claramente disso quando disse: "tudo em todos, e mais": "porque tudo é nele e dele vem tudo", e ainda: "nele habita toda a plenitude da divindade" (6). As palavras: em Cristo encabeçar todas as coisas, como também todas as outras semelhantes, interpretam-nas eles neste sentido.
3,5. Quanto pois ao Limite, que chamam com muitíssimos nomes, dizem que exerce duas atividades: a de constituir e a de dividir. Enquanto constitui e consolida é a Cruz, enquanto divide e delimita é o Limite. Dizem que o Salvador indicou estas operações deste modo: primeiro a de constituir, com aquelas palavras: "quem não carrega a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo", e, ainda: "toma a cruz e segue-me"; e a de dividir, com as palavras: não vim trazer a paz, mas a espada" (7). João- dizem eles -quis dizer o mesmo quando falava: "a pá está na sua mão: limpará a sua eira e recolherá seu trigo nos celeiros: mas quanto a palha, queimá-Ia-á num fogo inextinguível" (8).Com isto indicar-se-ia a ação do Limite: a joeira é interpretada como sendo a Cruz que consome todos os elementos hílicos, como o fogo consome a palha; purifica os redimidos como a joeira o trigo. Dizem que o apóstolo Paulo se refere a esta cruz com estas palavras: "a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam é Poder de Deus", e ainda, "quanto a mim não aconteça gloriar-me se não na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e para o mundo" (9).
3,6. Eis o que dizem de seu Pleroma e da formação dos Eões, querendo adaptar as belas palavras da Escritura às "suas más interpretações.
E não só nos Evangelhos e nos ecritos apostólicos procuram suas interpretações extravagantes e exegeses adaptadas, mas também na Lei e nos Profetas, onde se acham muitas parábolas e alegorias que podem ser mal interpretadas por causa da multiplicidade dos sentidos, adaptando artificiosamente a sua ambigüi- dade às suas fantasias, levando assim longe da verdade os que não conservam uma fé inabalável no único Deus Pai todo-poderoso e em Jesus Cristo seu único Filho.
(1) Cf. Lc 3,33; Mt 20,1-7
(2) Cristo e o Espírito Santo fonnam um casal (um sizígia) porque o espírito, em língua semita, é considerado um ser feminino.
(3) Ef3,21.
(4) Lc 2,42-46; Mt 10,2; Lc 6,13.
(5)Mt 5,18.
(6) CI3,11; Rm 11,36; CI2,9.
(7) Lc 14,17; Mc 10,21; Mt 10,34.
(8) Mt 3,2; Lc 3,17.
(9) 1Cor 1,18; G16,14.

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